quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Exercício

GRUPO I
Lê atentamente o texto, que é uma crónica extraída da revista Pública, e responde ao questionário que se segue.

Declaração de Amor
(...)
Cometi uma grave falta moral só possível nos nossos electrónicos tempos. Sofro as consequências. Não sei como reparar o mal, nem a quem pedir perdão. Sinto-me ainda mais isolado na minha solidão.
Foi isto assim. Faz hoje dez dias, antes de adormecer, por volta das duas da manhã, tive a nefasta ideia de verificar se tinha novo correio electrónico. Estava cansado, ligeiramente engripado, confuso com a confusão das coisas do mundo. Entre umas poucas mensagens das quais logo me esqueci, vinha uma declaração de amor. Declaração de amor era mesmo o título da mensagem. Quando a abri e li, percebi que era um texto, que considerei do género poético, que me era enviado por uma pessoa que não vejo há anos, e que, desconheço como, soube do meu endereço electrónico.
A mensagem era bonita, apesar de dois erros ortográficos e um de concordância, mas estranhei que me fosse dirigida. A ausência de traços corporais nas mensagens electrónicas pode ter contribuído para isso. Refiro-me à ausência da caligrafia, do timbre da voz, do cheiro da pele no papel, por exemplo. Uma mensagem electrónica parece ir directamente de uma alma para outra sem necessitar de mais nada, escrita de fantasmas. Quando a li pela segunda vez, fiquei com a nítida, ou confusa, sensação de que não lhe saberia responder, mas que alguma coisa tinha de fazer com ela. Era como um pedaço de fogo que não podia reter nas minhas mãos. Copiei-a mecanicamente, com os vários erros e a sua duvidosa poesia, e mandei-a sem mais para a correspondente favorita.
Antes de carregar no botão send, ainda hesitara, como se adivinhasse a grande asneira que fazia. Mas é tão fácil carregar num simples botão. O que não adivinhava era que as consequências fossem tão graves. No dia seguinte, recebia uma mensagem da minha correspondente favorita, - resposta de uma seriedade só comparável à sua crueldade. Dizia-me, resumidamente, que não admitia que brincasse com ela e pedia-me para não lhe voltar a enviar e-mails. Fiquei destroçado.
Tenho de confessar que fiquei apaixonado pela minha correspondente favorita no preciso instante em que a vira, meses antes, sentada muito direita numa mesa de uma esplanada a olhar o mar. Impressionara-me de maneira definitiva o modo como a beleza dela se misturava com o que interpretei ser uma profunda melancolia. Parecia uma heroína de Dostoievsky. Depois disso nunca mais a vi, porque estamos geograficamente muito afastados por muitas milhas marítimas, se bem que electronicamente tão perto, à distância de segundos. Começámos a correspondermo-nos, primeiro irregularmente, depois todos os dias e mesmo mais do que uma vez por dia.
Eu comecei a gostar dela e creio que ela também começou a gostar de mim. Quando lhe escrevi que lamentava não haver tempo para lhe escrever tudo o que desejava, ela respondeu-me de seguida que uma frase bastava para colorir o dia, para não me preocupar com isso. Ao abrir o meu correio, eu já procurava o seu endereço entre todos os outros e era a mensagem dela, ou que abria primeiro, ou que deixava para o fim. São coisas assim que nos ajudam a avançar nos dias, pequenas coisas que nos retiram por instantes todo o peso do mundo. As mensagens dela tinham espírito, contavam pequenos incidentes, desejavam-me coisas boas. Esperava-as de véspera com uma pequena esperança que me trazia o coração quente.
(…)
Pedro Paixão, in revista Pública, 13 de Janeiro de 2002 (texto com supressões).

1. Numa curta introdução o narrador anuncia, resumidamente, o episódio que vai contar.
1.1. Delimita, no texto, essa introdução.
A introdução corresponde ao primeiro parágrafo.
1.2. Explica, por palavras tuas, o seu conteúdo.
O narrador acha que cometeu um erro, precipitou-se ao ler o correio electrónico e não sabe, ou apresenta algumas dúvidas, como remediar a situação.
2. De seguida o narrador explica, em pormenor, como tudo se passou.
2.1. Descreve todas as acções do narrador desde que abriu “a declaração de amor” até a reenviar à sua correspondente favorita.
Abriu a mensagem veio-lhe à memória a vaga ideia de quem a teria enviado e teceu considrações sobre a mensagem, que "era bonita", tinha erros, mas apesar disso causou-lhe tão boa impressão que a releu e, entusiasmado resolveu reencaminhá-la.
2.2. Antes de enviar a mensagem, o narrador hesitou.
2.2.1. Identifica a(s) razão(ões) que estaria(m) na origem desta indecisão.
As razões da indecisão prendem-se com a vaga ideia de quem seria, a beleza do texto e a possível reacção do receptor. Tudo isso pesou na indecisão.
2.2.2. Transcreve a frase em que ele pretende explicar por que razão enviou a mensagem.
"Era como um pedaço de fogo que não podia reter nas minhas mãos."
2.3. As consequências do seu irreflectido gesto foram ‘graves’.
2.3.1. Imagina o que terá levado a destinatária da mensagem a tomar a atitude descrita.
Pela reacção percebe-se que não estaria à espera de uma mensagem daquelas. Devia ser uma pessoa sem humor e levaria as coisas mesmo a sério. Por outro lado, se calhar as relações entre os dois não teriam sido as melhores, ou então ela estaria a reagir assim porque até podia gostar dele, mas estava magoada.
3. Explica o sentido do seguinte fragmento textual: “Uma mensagem electrónica parece ir directamente de uma alma para outra sem necessitar de mais nada, escrita de fantasmas.” (linhas 11-13)
Esta observação do narrador exemplifica bem a comunicação nos dias de hoje. É de uma simplicidade enorme, mas ao mesmo tempo tão complexa e eficaz. Parece que se comunica sem mediador, de alma a alma, entenda-se de computador a computador, como se nada existisse a fazer essa ligação. Ao fim e ao cabo o canal de comunicação é invisível, daí a aproximação a fantasma.
4. Identifica também as figuras de estilo presentes nos excertos:
a) "escrita de fantasmas".
A expressão é uma metáfora. Refere-se a uma realidade de escrita como se fosse própria de fantasmas. Aproxima um conceito do outro, mas sem usar a partícula comparativa.
b) "pequenas coisas que nos retiram por instantes todo o peso do mundo."
Neste caso a frase transmite-nos a ideia de exagero, portanto o recurso estilístico é a hipérbole.

Agradeço ao Paulo de Lousada por me facultar esta prova

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